terça-feira, 2 de novembro de 2010

You can't always get what you want

... but if you try sometimes, you get what you need.


Analista: Veio antes do combinado... algum problema novo?

Paciente: Não preciso mais desses encontros.

Analista: Então tem finalmente visto algum sentido na vida?

Paciente: Nunca me senti tão miserável e a vida nunca foi tão vazia de significado.

Analista: ... não foram essas as razões que te fizeram procurar minha ajuda há algumas semanas?

Paciente: Eu era muito mais ingênuo até então.

Analista: Está dizendo que te ajudei a tornar-se mais pessimista e miserável, e que por isso não precisa mais de terapia?!

Paciente: Quanto eu te devo?

Analista: ... ?

Paciente: E pessimista não é uma boa palavra, faz crer que estou errado quanto à arbitrariedade do mundo.

Analista: E não parece te ocorrer que estar errado é uma possibilidade...

Paciente: Até a existência de Deus é uma possibilidade, já conversamos sobre isso, eu não seria ridículo de dizer que detenho a verdade e que ela está em tudo o que penso.

Analista: As verdades são voláteis como são os...

Paciente: Nossas certezas são voláteis, a verdade nunca foi. E pare de falar nela no plural, só existe uma verdade.

Analista: E eu suponho que você saiba qual é...

Paciente: *impaciente* Você não ouviu o que eu acabei de dizer?! Nossas conversas eram melhores quanto você não tentava sustentar uma opinião.

Analista: Não sou bom com argumentos, talvez por isso seja um analista. A razão tenta funcionar como lógica objetiva, mas ela é apenas um dos nossos instrumentos, o campo onde trabalho funciona numa outra linguagem, capaz de subverter a própria natureza para alimentar suas impressões.

Paciente: Está falando sobre nossas crenças?

Analista: Não só sobre elas, mas toda base fantasiosa que nossa consciência preparou para que vivamos confortavelmente sobre ela.

Paciente: Eu dificilmente vou entender por que nos tornamos miseráveis quando tentamos viver em contato direto com a frialdade do mundo, sem esse artifício mental de florear a existência.

Analista: Você sempre rejeitou minhas metáforas, mas vejo que se dá bem com elas.

Paciente: Não gosto delas, mas desconheço outra forma de pensar sobre isso. Vivo trancafiado nessa representação errônea do mundo, com o perdão da redundância, e fico vendo através de frestas que há alguma verdade lá fora...

Analista: Para a qual talvez não estejamos prontos.

Paciente: Para a qual com certeza não estamos prontos, do contrário não funcionaríamos assim, criando e representando, maquiando e desenhando eufemismos.

Analista: E o que te incomoda tanto sobre isso?

Paciente: É a impressão - muito nítida, devo dizer - de que se um dia eu fosse capaz de olhar e ver o mundo, a vida, com os olhos completamente despidos de toda essa auto-magnificação a que nossa idolatrada razão nos submete, eu daria uma grande gargalhada de desdém.

Analista: Desdém de si próprio?

Paciente: De toda humanidade, eu veria um quadro vazio, um esqueleto seco que bilhões de imbecis adornaram com suas falsas impressões, e por elas sofreram, fizeram sofrer, desperdiçaram vidas e gerações inteiras...

Analista: Sim, e agora, vendo tudo em sua irremediável crueza, nenhuma vida estaria mais desperdiçada...

Paciente: Estaria tudo absolutamente desperdiçado, desde o princípio.

Analista: E é por isso que veio aqui hoje...

Paciente: Quanto eu te devo?

Analista: Eu não tinha a intenção de te ajudar a chegar até aí.

Paciente: Sente-se mal por isso?

Analista: Sim. Mas não creio que tanto quanto você. Que, aliás, não me parece assim tão mal. Esse meio sorriso que tenciona nos olhos poderia fazer algumas pessoas duvidarem de toda essa miséria que você proclama.

Paciente: Niilismo não impede as pessoas de sorrirem, ou de socializarem-se...

Analista: Não exagere, sei que você continua um misantropo de primeira linha.

Paciente: Não tão extremista, eu gosto das pessoas, ao contrário do que às vezes faço pensar. Mas em doses homeopáticas.

Analista: E fracionadas.

Paciente: *sorrindo*... sério, quero saber quanto te devo.

Analista: ... eu deveria te cobrar uma fortuna.

Paciente: Por abandonar a terapia pela metade?!

Analista: Por me fazer ruminar minha própria miséria, e ir embora de repente.

Paciente: Já me disseram que faço isso algumas vezes.

Analista: Quem foi a última pessoa que te disse isso?

Paciente: Eu mesmo. E aí decidi te procurar.

Analista: Entendi... você não me deve nada. Não por enquanto.

Paciente: E até quando vai esse falso altruísmo?

Analista: Não sei. Se você nunca mais voltar, dou um jeito de te enviar a conta. Se aparecer de vez em quando, deixamos tudo certo com umas xícaras de café.

Paciente: ... parece bom.

Analista: Mas você não garante.

Paciente: Desculpe.

Analista: Cuide-se, rapaz. A vida muda até a mais áspera das certezas.

Paciente: Que bom que não disse "a mais áspera das verdades..."

Analista: Eu não diria... não depois de hoje. Até a próxima.

Paciente: Até.

domingo, 1 de agosto de 2010

Escrever não é algo que eu faço com facilidade, tampouco com regularidade. Tenho uma grande dificuldade de trocar em miúdos verbais uma ideia qualquer que me ocorre, preferindo, na maioria das vezes, o mutismo e o refúgio confortável do silêncio a um imbróglio de barreiras linguísticas intransponíveis por minha racionalidade claudicante. É quase exatamente como desconhecer o idioma em que se expressa seu próprio pensamento.
Eu poderia seguir nesta ignorância (que apesar de infringir um desconforto bastante considerável, já me ensinou a conviver com suas limitações), mas tenho sido instigado e estimulado a penetrar o emaranhado incógnito que é a minha própria linguagem. Não, não me refiro a escrever posts num blog. Minha antiga página, "Sujeito", já havia me dado oportunidades suficientes para exercitar experimentações do que para mim era, então, novo: transcrever subjetivamente qualquer entulho recolhido de meus rincões emocionais e imaginativos. Retire-se, entretanto, o peso pejorativo da palavra "entulho", e aí estaremos no sentido pretendido pelo antigo blog. Algo bem parecido com o texto de abertura desta nova página, escrito recentemente, mas na mesma premissa de antes, ilustrando a inexistência de limites temporais didáticos, isso deixamos a cargo dos relógios e calendários, ainda que, por muito que julguemos que conheçam do tempo, na verdade, nada saibam. Pois bem, o que quero dizer é que o contato que começo a ter com um tipo de conhecimento que até então apenas contemplava à distância, que é a filosofia da mente e da psicologia, parece sinalizar, ainda que com a timidez típica dos iniciantes, o caminho correto para o auto-conhecimento e o início do afrouxamento das amarras da minha própria linguagem. A psiquiatria ocupa-se do desajuste do sujeito ao seu meio, e é bem provável que nada poderá fazer por alguém se não houver esforços para que compreenda como seus próprios mecanismos se dão. "Torna-te quem tu és", e esta exortação exige uma verdade tão mais complexa quanto mais parecer óbvia ou simplória.
Esta não é uma intenção, e menos ainda é uma promessa de periodicidade de textos. Eu ainda caminho na contra mão desses pragmatismos, e nem ando no meu momento de maior criatividade, como talvez seria de se esperar de alguém que tem vivido uma experiência como a minha. As coisas na verdade continuam bem parecidas com o que sempre foram, e talvez sejamos nós os obcecados por mudanças contínuas, isso que chamamos de coisas, na verdade não mudam por si só, porque são simplesmente nossas vivências e abstrações sobre as pessoas e os acontecimentos.
Deixemos então de labirintos verbais que não nos levam a muito mais do que à confusão. O objetivo é o aprendizado, então partamos em direção a ele. Se o fim justifica os meios, isso só saberemos quando (ou se) chegarmos lá.

sexta-feira, 18 de junho de 2010




Meirelles disse que o mundo, hoje, ficou mais burro e mais cego. Talvez. Hoje, em Lanzarote, morreu um velhinho que vinha doente. O autor, inspirador e referência José Saramago, este ficará enquanto houver no mundo ao menos uma centelha de lucidez.


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Foto: Lia Costa Carvalho
Abriu os olhos para ver que tocava com insistência a música que tinha escolhido para acordá-lo todos os dias. Não querendo crer que lhe restavam tão poucos minutos para que se levantasse, barbeasse, banhasse, vestisse e separasse o material de que iria precisar para o dia, começou a sequência obedecendo-a de maneira bem menos metódica do que nos dá a impressão lendo-a assim, tão ordenada. Fez longas pausas durante as quais nem ele próprio podia precisar no que pensava. Desejou impropérios aos pouco verdadeiros bons-dias que ia receber ao sair por aquela porta. Pensou, mais uma vez, que não queria estar ali, mas não tinha certeza de onde queria estar, e novamente concluiu que não deveria perguntar-se sobre isso com medo de que respondesse a si mesmo "em parte alguma". De novo, qualquer devaneio neste sentido fora interrompido pelo arrefecimento do corpo pela frialdade da água, pela aspereza da toalha a largar-lhe fiapos pelo rosto, pela leve dor oca do estômago que protestava pelas quase dez horas de jejum. No ânimo tímido e promissor da manhã nas ruas, via como as mesmas pessoas conversavam, as mesmas umas com as mesmas outras, e como isso parecia alegrá-las. Pensava que a ele bastavam aqueles primeiros dedos de sol que desviavam das folhas das árvores para tocar-lhe o rosto, bastavam as próprias árvores, todas elas, as paineiras com aquelas barrigas roliças e galhos espinhentos, as sumaúmas de raízes imensas que se espalham desde o tronco feito cortinados de madeira viva, os ipês, que dão a qualquer inverno a gelada paralisia que se tem diante da mais densa e impressionante nuvem de flores amarelas, brancas, rosas e roxas, e os jacarandás, árvores azuis que só podem ter saído da imaginação de algum pintor enfadado de dar às flores as cores que sempre lhes dão. Não só o sol e as árvores, mas também a chuva - a justiça sempre urge que se seja feita quando parece-lhe que vai ser esquecida - pois também a chuva, quando posta em seu valioso lugar. Lembrou-se do que mais lhe agradava, e muito poucas vezes vieram-lhe as pessoas com suas constantes necessidades de falar, ou, agora seria mais adequado usar o execrado gerundismo, as pessoas não gostam de falar, gostam mesmo é de estarem falando, falando e falando, ato contínuo, deve-se ter dito aqui alguma outra vez que o homem, desde que aprendeu a falar, não parou mais.
Depois de meia jornada de trabalho e do almoço, pegou o livro que lia num ato meio automático, e enquanto passava os olhos pelas linhas, juntava-lhes as sílabas, formavam-se as palavras, seguiam-se umas das outras, chegavam a configurar-se as frases, mas eram apenas isso, sílabas, palavras e frases, eram sons que reverberavam crânio adentro, eram voltas que fazia a língua como quem vai pronunciá-las, significantes vazios do que lhes desse sentido, as palavras podem ir do absolutamente nada ao absurdamente tudo, isso apenas depende da atenção que lhes é dada. Foi isso o exato ocorrido aqui, as frases deixaram de ser um cântaro vazio para ser qualquer outra metáfora que faça compreender que o que houve foi uma inefável plenitude, quase transbordante, simplesmente por serem as sílabas juntadas, as palavras seguidas e as frases configuradas as seguintes, "... diz-se que cada pessoa é uma ilha, e não é certo, cada pessoa é um silêncio, isso sim, um silêncio, cada uma com o seu silêncio, cada uma com o silêncio que é". Deteve-se aí e não se importou com o que se dizia antes ou depois, fechou o livro deixando-o de lado, prometeu voltar um capítulo para ler com mais atenção depois, mas isso o fez num nível superficial de atividade mental, o cérebro humano tem dessas seletivíssimas artimanhas. Sob essa fina camada de atividade mental superficial, uma única frase preenchia todo o resto do que sobrava, e rebatia de um lado a outro, expandia-se e espalhava-se, "sou o silêncio do mundo inteiro", e às vezes complementava, "o silêncio que o mundo inteiro não quer fazer.". Aqui é cabida uma prestação de contas, uma explicação que não foi pedida, mas que na verdade pediu para ser dada, isso de ser o silêncio do mundo inteiro, o silêncio que o mundo não quer fazer, não foi uma conclusão. Conclusões não chegam assim, do zero ao outro extremo, sem uma introdução e desenvolvimento, sem uma linha argumentativa, apesar de elas, as conclusões, muitas vezes servirem para o mesmo que serviu essa idéia que brotou-lhe de repente: para nada.
Sacudiu a cabeça e sentiu-se voltar da espécie de imersão em que havia mergulhado, dissipando o silêncio absurdo que se fez dentro dele próprio. Em breve voltaram-lhe os âncoras do noticiário a anunciar sobre crianças desaparecidas, sobre os benefícios da vitamina C, sobre a previsão do tempo, em breve voltou-lhe o ronco do ar condicionado. O relógio dizia que ainda tinha cinquenta minutos antes de precisar voltar ao trabalho. Olhou em volta, viu o livro de lado, e agora a testa franzida parecia ter nela desenhada uma interrogação, e que o sorriso que tinha nos olhos, não nos lábios, não era de alegria, mas de puro deboche de si próprio. "Mas que ideia, essa agora foi nova, não sei o que foi isso de silêncio do mundo inteiro.", e isso disse em voz alta enquanto deitava-se para aproveitar o tempo que tinha antes do expediente da tarde. Daí para frente tudo o que lhe ocorreu é difícil trocar em miúdos traduzíveis, são aquelas voltas que dão as ideias antes de mergulharem no abismo que traz todo travesseiro, são aquelas vozes, aqueles sobressaltos, a sala de estar da casa em que se viveu na infância, bichos que falam, cores invertidas, zumbidos, vôos, quedas, e o silêncio, mas dessa vez só um microssegundo dele que parecemos viver logo antes de tocar a música do despertador. Não voltou a dar o ar da graça a ideia abobalhada que o assaltou e rendeu ainda há pouco, nem mesmo voltou para explicar a que veio, abandonou-lhe por completo. Lavou a cara para ver se lhe apagava a interrogação da testa, mas não o sorriso debochado dos olhos, este tencionou deixá-lo ali, caía-lhe bem, e poderia servir de espantalho para novos disparates que surgissem ao olhar-se no espelho. Novamente em voz alta, disse "É isso o que eu sei fazer, ter ideias ridículas, inexplicavelmente ser tomado por elas, e logo depois refutá-las para sempre". Abriu novamente o livro, lá estavam as sílabas, palavras e frases. Leu e concordou com elas, simplesmente. "São inocentes, não têm culpa desses maneirismos obsessivos". O trabalho lhe esperava já com certo atraso. Saiu em silêncio ainda ajeitando o uniforme, respondendo com o sorriso dos olhos ao primeiro boa tarde que ouviu ao abrir a porta.

28 Abr 2010