sexta-feira, 18 de junho de 2010




Meirelles disse que o mundo, hoje, ficou mais burro e mais cego. Talvez. Hoje, em Lanzarote, morreu um velhinho que vinha doente. O autor, inspirador e referência José Saramago, este ficará enquanto houver no mundo ao menos uma centelha de lucidez.


___________________________________________________________
Foto: Lia Costa Carvalho
Abriu os olhos para ver que tocava com insistência a música que tinha escolhido para acordá-lo todos os dias. Não querendo crer que lhe restavam tão poucos minutos para que se levantasse, barbeasse, banhasse, vestisse e separasse o material de que iria precisar para o dia, começou a sequência obedecendo-a de maneira bem menos metódica do que nos dá a impressão lendo-a assim, tão ordenada. Fez longas pausas durante as quais nem ele próprio podia precisar no que pensava. Desejou impropérios aos pouco verdadeiros bons-dias que ia receber ao sair por aquela porta. Pensou, mais uma vez, que não queria estar ali, mas não tinha certeza de onde queria estar, e novamente concluiu que não deveria perguntar-se sobre isso com medo de que respondesse a si mesmo "em parte alguma". De novo, qualquer devaneio neste sentido fora interrompido pelo arrefecimento do corpo pela frialdade da água, pela aspereza da toalha a largar-lhe fiapos pelo rosto, pela leve dor oca do estômago que protestava pelas quase dez horas de jejum. No ânimo tímido e promissor da manhã nas ruas, via como as mesmas pessoas conversavam, as mesmas umas com as mesmas outras, e como isso parecia alegrá-las. Pensava que a ele bastavam aqueles primeiros dedos de sol que desviavam das folhas das árvores para tocar-lhe o rosto, bastavam as próprias árvores, todas elas, as paineiras com aquelas barrigas roliças e galhos espinhentos, as sumaúmas de raízes imensas que se espalham desde o tronco feito cortinados de madeira viva, os ipês, que dão a qualquer inverno a gelada paralisia que se tem diante da mais densa e impressionante nuvem de flores amarelas, brancas, rosas e roxas, e os jacarandás, árvores azuis que só podem ter saído da imaginação de algum pintor enfadado de dar às flores as cores que sempre lhes dão. Não só o sol e as árvores, mas também a chuva - a justiça sempre urge que se seja feita quando parece-lhe que vai ser esquecida - pois também a chuva, quando posta em seu valioso lugar. Lembrou-se do que mais lhe agradava, e muito poucas vezes vieram-lhe as pessoas com suas constantes necessidades de falar, ou, agora seria mais adequado usar o execrado gerundismo, as pessoas não gostam de falar, gostam mesmo é de estarem falando, falando e falando, ato contínuo, deve-se ter dito aqui alguma outra vez que o homem, desde que aprendeu a falar, não parou mais.
Depois de meia jornada de trabalho e do almoço, pegou o livro que lia num ato meio automático, e enquanto passava os olhos pelas linhas, juntava-lhes as sílabas, formavam-se as palavras, seguiam-se umas das outras, chegavam a configurar-se as frases, mas eram apenas isso, sílabas, palavras e frases, eram sons que reverberavam crânio adentro, eram voltas que fazia a língua como quem vai pronunciá-las, significantes vazios do que lhes desse sentido, as palavras podem ir do absolutamente nada ao absurdamente tudo, isso apenas depende da atenção que lhes é dada. Foi isso o exato ocorrido aqui, as frases deixaram de ser um cântaro vazio para ser qualquer outra metáfora que faça compreender que o que houve foi uma inefável plenitude, quase transbordante, simplesmente por serem as sílabas juntadas, as palavras seguidas e as frases configuradas as seguintes, "... diz-se que cada pessoa é uma ilha, e não é certo, cada pessoa é um silêncio, isso sim, um silêncio, cada uma com o seu silêncio, cada uma com o silêncio que é". Deteve-se aí e não se importou com o que se dizia antes ou depois, fechou o livro deixando-o de lado, prometeu voltar um capítulo para ler com mais atenção depois, mas isso o fez num nível superficial de atividade mental, o cérebro humano tem dessas seletivíssimas artimanhas. Sob essa fina camada de atividade mental superficial, uma única frase preenchia todo o resto do que sobrava, e rebatia de um lado a outro, expandia-se e espalhava-se, "sou o silêncio do mundo inteiro", e às vezes complementava, "o silêncio que o mundo inteiro não quer fazer.". Aqui é cabida uma prestação de contas, uma explicação que não foi pedida, mas que na verdade pediu para ser dada, isso de ser o silêncio do mundo inteiro, o silêncio que o mundo não quer fazer, não foi uma conclusão. Conclusões não chegam assim, do zero ao outro extremo, sem uma introdução e desenvolvimento, sem uma linha argumentativa, apesar de elas, as conclusões, muitas vezes servirem para o mesmo que serviu essa idéia que brotou-lhe de repente: para nada.
Sacudiu a cabeça e sentiu-se voltar da espécie de imersão em que havia mergulhado, dissipando o silêncio absurdo que se fez dentro dele próprio. Em breve voltaram-lhe os âncoras do noticiário a anunciar sobre crianças desaparecidas, sobre os benefícios da vitamina C, sobre a previsão do tempo, em breve voltou-lhe o ronco do ar condicionado. O relógio dizia que ainda tinha cinquenta minutos antes de precisar voltar ao trabalho. Olhou em volta, viu o livro de lado, e agora a testa franzida parecia ter nela desenhada uma interrogação, e que o sorriso que tinha nos olhos, não nos lábios, não era de alegria, mas de puro deboche de si próprio. "Mas que ideia, essa agora foi nova, não sei o que foi isso de silêncio do mundo inteiro.", e isso disse em voz alta enquanto deitava-se para aproveitar o tempo que tinha antes do expediente da tarde. Daí para frente tudo o que lhe ocorreu é difícil trocar em miúdos traduzíveis, são aquelas voltas que dão as ideias antes de mergulharem no abismo que traz todo travesseiro, são aquelas vozes, aqueles sobressaltos, a sala de estar da casa em que se viveu na infância, bichos que falam, cores invertidas, zumbidos, vôos, quedas, e o silêncio, mas dessa vez só um microssegundo dele que parecemos viver logo antes de tocar a música do despertador. Não voltou a dar o ar da graça a ideia abobalhada que o assaltou e rendeu ainda há pouco, nem mesmo voltou para explicar a que veio, abandonou-lhe por completo. Lavou a cara para ver se lhe apagava a interrogação da testa, mas não o sorriso debochado dos olhos, este tencionou deixá-lo ali, caía-lhe bem, e poderia servir de espantalho para novos disparates que surgissem ao olhar-se no espelho. Novamente em voz alta, disse "É isso o que eu sei fazer, ter ideias ridículas, inexplicavelmente ser tomado por elas, e logo depois refutá-las para sempre". Abriu novamente o livro, lá estavam as sílabas, palavras e frases. Leu e concordou com elas, simplesmente. "São inocentes, não têm culpa desses maneirismos obsessivos". O trabalho lhe esperava já com certo atraso. Saiu em silêncio ainda ajeitando o uniforme, respondendo com o sorriso dos olhos ao primeiro boa tarde que ouviu ao abrir a porta.

28 Abr 2010